Saturday, May 17, 2008

Recorremos Ao Autor

-O senhor esperava um reconhecimento tão absoluto após tanto tempo de carreira em relativo anonimato?
- Não. Na minha idade não se espera nem que o sol nasça.
- Sua motivação para escrever continua a mesma?
- É inevitável. É como cagar. Você é tomado por aquela sensação específica e sabe que tem algo para sair de dentro de você.
- Em suas últimas obras muitas mulheres morrem...
- Elas teimam em fazer isso.
- ...Na maioria dos casos assassinadas...
- É, quando assassinadas elas parecem ser ainda mais teimosas.
- O senhor não tem medo de ser tomado como misógino?
- Tenho. Mas as pessoas sempre entendem tudo errado. Você diz "liquidificador" e elas entendem "borboleta". Não há o que fazer.
- O senhor diria que a comunicação é impossível?
- Não sei se percebo do que você está falando.
- Seria impossível se comunicar?
- O problema é que não ouvimos o que nos falam. As palavras dos outros despertam em nós nossas próprias idéias e o que nossos interlocutores dizem acaba completamente de lado.
-Então, a literatura é possível? Há futuro para a literatura?
- São duas perguntas. Preciso de um tempo para pensar.
- ...
- ...
- ...
- ...
- Não. Não há futuro para ninguém. Há futuro para os morros, pedras, árvores e algumas tartarugas. O resto já acabou.
- Em seus livros há uma incidência notável de pessoas com defeitos físicos...
- Pensei que isso acontecesse na vida real também. Deus tem um senso de humor inexplicável.
- Quem o senhor acha que lê seus livros?
- Quem lê hoje. Quem tem muito orgulho do próprio hábito de ler. Quem se habituou à leitura por algum motivo. Na verdade, não faço a menor idéia, são conjecturas.
- Nos últimos anos, o senhor tem preferido a solidão. O senhor não teme o distanciamento do seu público?
- Não vivo sozinho (N.E. O autor cria 25 gatos vira-latas). São 25 ao todo. Um pequeno exército. Quanto à solidão, realmente penso que, quanto mais sozinhos, mais próximos estamos de nossa real condição de...bem, não importa.
- Não importa?
- Não, não importa. Pode perguntar a qualquer tartaruga.
(...)
Alguns agradecimentos vazios e cumprimentos insinceros depois (devia haver um tipo de cumpirmento que significasse "Estou sendo cortês, mas não dou a mínima se você está morto ou vivo") ele ficou pensando nos joelhos de sua jovem entrevistadora. Quem não era jovem diante dele? Se sentiu melhor com uma estranha certeza de que ela em breve se transformaria numa matrona cancerosa. Ela esqueceu dele antes de olhar o cabelo no espelho do elevador.


-

1 Comments:

Blogger Marcos AM Ramos said...

Um de seus melhores textos, bom demais mesmo. Não há uma só frase desperdiçada.
Vou esperar pelo dia em que lerei essa entrevista de fato em uma revista do gênero.

4:32 PM  

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