Monday, January 08, 2007

Voadora

Se há uma coisa que não colabora de forma alguma com a beleza e a elegância feminina, essa coisa é pular da janela do décimo-terceiro andar. Aliás, pular da janela não é exato, ela despencou da sacada, mas não se diz "pulou da sacada". Não se diz o que se deve, e talvez a culpa toda seja das palavras, imprevisíveis. Será que ela gostaria que eu contasse sua história ou o salto mudo é a sua história e o resto todo prólogo longo demais? Dizer nada seria mais seguro, mas conforto é para os canalhas, e eu já ia dizendo antes das palavras entrarem no caminho de qualquer jeito.
Ela que sempre foi tão graciosa, sempre tão senhora dos seus movimentos, desabou sem a menor cerimônia e se espatifou na calçada, alheia aos sentimentos dos transeuntes. Definitivamente o ato não era de seu feitio, desconfio que estivesse alguns passos além de seus limites normais. Eu só posso supor, porque ela não vai falar nunca mais.
Observei sua queda com as duas mãos postas sobre o parapeito, sem palavras. Tive a impressão então de que jamais as usaria novamente, permaneceria mudo até que caísse de minha sacada também. Entretanto, quando ela se dissolveu numa mancha vermelha lá embaixo, uma frase se formou nos meus lábios: "Que coisa desagradável!"
Não posso admitir que ela tenha feito o que fez com aquele corpo dela. Aquele corpo que há cinco mil anos atrás me fizera vencer minha habitual timidez e abordá-la numa festa, mal contendo a saliva. Não só a saliva, um homem inflamado de desejo quer transbordar-se por toda a parte, toda a sorte de secreções luta para encontrar uma saída. Eu disse homens, mas acho que mulheres também. Talvez a paixão seja líquida.
Na mesma noite em que a conheci já estava completamente apaixonado por aquele ser. Todo o meu corpo fervia com a ânsia de tomar aquele corpo para mim até o fim da minha vida. E destruí-lo lentamente a cada dia, como deseja todo homem sinceramente apaixonado. Aqui eu digo homem, mas não sei quanto às mulheres. Da última vez que perguntei a uma delas, ela disse que o amor pelos homens tinha a ver com o espírito maternal, algo assim. Daqui a pouco eu vou ligar para ela, porque me ocorreu que ela pode ter pulado da janela também. Ou da sacada.
Tive vontade de rir do horror das pessoas lá embaixo diante do cadáver despedaçado. Porque, pense bem, e se o verdadeiro riso for o choro? Vou repetir porque deu vontade. E se o verdadeiro riso for o choro? Me deu essa impressão agora de que nada é possível.
Ela tinha sido meu amor já, naquela época muito distante de que falei antes. Sempre achei que na sua perfeição faltava uma cicatriz, mas acho que hoje ela foi longe demais. E se eu houvesse dito a ela que estava do seu lado? Teria que descobrir antes de que lado estou. Acabaria pulando junto e quem contaria a história? Essas cortinas?

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

talvez a culpa toda seja das palavras, imprevisíveis

3:47 PM  

Post a Comment

<< Home

Free Web Site Counter
Free Counter <