Friday, June 20, 2008

Ele quem? Precisou olhar na carteira de identidade para ter certeza, mas mesmo assim não teve. Lembrou do que diziam sobre Da Vinci e sua capacidade de enxergar beleza embrionária em rachaduras na parede. Hoje ele se sentia daquele jeito, mas ao contrário, olhava para as coisas e previa seu fim, via o que elas um dia deixariam de ser. Via como o gato vagabundo da esquina seria atropelado por um insensível caminhão de lixo, como o bebê berrando num carrinho empurrado por uma jovem senhora levemente despenteada estouraria os miolos, via as folhas no chão do próximo outono. Fazia isso sem tristeza, sem alarde, como se escovasse os dentes.
Ele ia ao encontro da mulher cujo tempo andava ocupando. Ela andava apaixonada por ele, mas só nos meses ímpares. Nos pares o odiava. Ele não sentia nada, exceto uma dor preguiçosa logo depois que ejaculava. Ao menos era homem e gozava sempre, sem esforço, depois caía no sono. Quando dormia, sonhava com a pré-história, mas a seu jeito. Imaginava o pavor das noites e a imensidão de campos verdes antes da civilização. Estranhamente, não havia selvas ou florestas fechadas em seus sonhos pré-históricos, só campos verdes sem fim. Eu digo estranhamente, mas ele diria que é completamente normal.
Quando chegaram, ele e ela, ao lugar marcado, sentaram à beira de um lago sujo, no qual os peixes devoravam-se uns aos outros. Se tivessem escolha, talvez fossem mais educados, mas não era o caso. Ele sentiu os ombros mornos dela e previu que morreria lentamente, não que desejasse. A idéia foi dela: "Por que não jogamos no lago, dentro de um saco de supermercado?". Ele estava cansado, tanto fazia. Talvez para sempre, só o lodo saberia a resposta.
Ao se separarem, ficou olhando enquanto ela se afastava. Sentiria falta da sua bunda e do seu cheiro. Dos seus ataques de riso e de fúria. Quando chegou até a esquina, ela desapareceu, sem um ruído sequer. Não era certo gente desaparecer assim daquele jeito, que decepção o jeito que as coisas acontecem na chamada realidade. A realidade sempre o decepcionava, a ponto de, se esperasse flores, vinham protozoários, parafusos. Polígonos. Que se danasse a realidade. Da próxima vez que ela se infiltrasse em seus sonhos, ele a dinamitaria. Do café da manhã em diante a ignoraria. À meia-noite lhe cravaria uma faca no coração, se tivesse um, a realidade.
No caminho para casa, compraria as cortinas para o boxe, que havia prometido a si mesmo já há meses. Tinha visto uma especial que lhe agradava, uma que misturava peixinhos e planetas, estrelas e estrelas-do-mar. Um homem precisa de pequenas coisas para ser feliz. Por descuido ou azar, sempre acabava com mulheres que almejavam coisas grandes demais. Não está escrito nas revistas femininas, mas a morte se esconde nas coisas grandes.
Alguém lhe perguntou as horas, ele disse propositalmente as horas erradas, quem quer aa hora certa, compra um relógio. A interrupção o fez esquecer no que estava pensando, o que lhe deu um pouco de raiva, mas foi até bom.

1 Comments:

Blogger Marcos AM Ramos said...

Dê pra ele uma cerveja e o endereço do Met-Art. Funciona comigo quando quero minha própria realidade ao invés dessa mais real.

6:03 PM  

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