Saturday, December 23, 2006

Saco De Mentiras Cap. 2

- Cadê tuas chaves, rapaz?
- Acho que deixei no escritório... - respondi.
- Hmpf!! - suspirou o velho, do jeito que me fazia querer morrer na adolescência. Erao jeito especial dele de demonstrar desprezo pelas faltas, limitações e deslizes de seus semelhantes, um desprezo tão imenso que nem se utilizava de uma palavra inteligível para se expressar, saía como um rosnado repleto de consoantes. Mas quando se tem 25 anos e ainda se está vivo, é necessário muito mais do que o desprezo paterno para nos derrubar. A gente se acostuma, quase gosta. Só mais uma diversão diária, como olhar para a cara de múmia do velho, ou vê-lo tirando a dentadura à noite e colocá-la num copo com água. Olhar para ele e ver a mim mesmo um dia, se acostumando.
Ele voltou à sua cadeira de frente para a TV e pegou o violão no colo, com uma delicadeza insuspeita. Não assistia as imagens do modo convencional, preferia o volume no "mute", enquanto acariciava as cordas do violão. Eu fui até o banheiro urinar. Alguma coisa na TV deve ter acendido o velho, ou talvez sua própria mente começasse a ter pequenos curto-circuitos, porque ouvi sua voz de lá.
- Deus...que?
- Falou alguma coisa, pai? - disse minha cabeça à porta.
- Pedir a Deus pra que porra? Pra que?
Voltei pra sala para tentar entender.
- Quê que o senhor tá falando?
O velho me olhou nos olhos.
- Você acha que Deus atende aos pedidos que a gente faz?
Soltei um sorriso cansado, meio doente.
- Como assim?
O velho exercia um poder inegável sobre mim. Na frente dele eu sempre bancava o idiota, e ele fazia questão de perceber isso e gozar com a situação.
- Imagina dois caras. Os dois...um tão crente quanto o outro...vivendo para a igreja, essas coisas...e imagina que um deles pede a Deus que no dia seguinte faça sol porque...sei lá por quê, ele quer levar o pessoal dele pra praia, algo assim. E que o outro, com a mesma fé, tão crente quanto, peça a Deus ao mesmo tempo que no dia seguinte chova porque...ah não interessa o motivo, vai saber o que se passa na cabeça dessa corja!
- Sei...
- A qual dos dois tu acha que Deus atenderia?
- Boa pergunta. Sei lá, pai. Acho que Deus pensaria em algo.
- 'Cê diz pensar numa maneira de enrolar os dois trouxas?
- Não, pai. Acho que ele ia tentar, tipo, achar um meio de agradar aos dois, pô, afinal ele é Deus!
- Mas tu não sabe nada de nada mesmo hein? Se eu te disse que não tem como agradar aos dois, um quer uma coisa, o outro outra! E a fé é a mesma, caramba! Como é que Deus sai dessa, me diz?
Pensei em dizer que poderia chover durante uma parte do dia, depois fazer sol, ou vice-versa, ou ainda que eles poderiam morar distantes um do outro, isso não ficara claro na história, mas sabia que o velho não queria que seu enigma tivesse resposta. Mesmo os velhos sábios se divertem criando enigmas inúteis para embaralhar as jovens mentes que invejam, imagina meu pai que era um estúpido! É dever do filho matar o pai, de outro jeito a natureza se ofende. Não disse nada, assumi o papel do derrotado. Ou então disse isso:
- É, acho que não tem solução...
- Burro! Tem sim. Sabe o quê que Deus faz? Ele ignora os pedidos, só isso - disse meu pai alterado - , ele não tá nem aí pras orações, promessas, essas bobajadas todas! Hmpf...Deus...E pensar que a tua mãe passou a vida toda pedindo desculpas, implorando, rezando na hora de dormir, de comer, acordar, pra ganhar o quê?
Mais uma pergunta que não pedia resposta, mais até do que a outra. Continuou:
- Pra morrer em cima de uma cama com as tripas podres, de crucifixo na mão...Coitada...Tua mãe era boa, moleque, a melhor que eu conheci!
O velho andou até a janela, era seu discurso para o mundo.
- Veja só como é que a gente, homem, é estrúpido. A gebnte procura sem descansar por uma mulher que seja especial, diferente, que ame a gente...
Eu não procurava por nada parecido. Era só o velho falando e eu ouvia, calado mas discordando em silêncio que é mais seguro. Continuou ele:
-... e só a gente, e que fique com a gente até o fim, e quando encontramos uma, fazemos o que?Casamos com ela, despejamos nela, em mais ninguém, toda a nossa imundície.
- Que isso pai?
- É. Se eu pudesse voltar no tempo, a última coisa que eu ia fazer ia ser casar com a tua mãe. Ia sim amar ela bastante, que isso ela merecia! Mas pra quê casar? Pra quê obrigar ela a suportar a minha nojeira? Foi isso que matou ela! Ah, eu não fui direito com a sua mãe, sabia?
- Não pai, isso não...
- Hmpf...'Cê não sabe de nada! Cadê a tua mulher? Você não conheceu tua mãe como eu conheci! Aqueles coxões, aqueles peitos enormes e duros! Depois que ela te teve, nunca mais foi a mesma, engordou e não parou mais, coitada!
Eu tinha esquecido, a culpa era minha também. O ar ficou quase irrespirável, eu com a minha culpa de ter estragado minha mãe, meu pai com seu remorso de ter envenenado as entranhas dela. Dois miseráveis. Dois homens sem mulher. Mas foi rápido como o fim do mundo costuma ser, segundos...Logo não havia dor na sala, só uma sensação marron esquisita, um sentimento para o qual não inventaram palavra correspondente, ou talvez um inseto tão feio e mau que a natureza tenha querido abortar, estivesse agora cortejando a lâmpada, depois de ter entrado pela janela, sentindo o fedor de seus iguais...

1 Comments:

Blogger Marcos AM Ramos said...

Você tá seguindo muito bem, cara. Manda ver nesse romance. Os questionamentos sobre "o que Deus faria" costumam me ocorrer, e as conclusões são infinitas. Que bom que ao menos teus personagens conseguem botar uma definição.
Aguardo o capítulo 3.

3:59 PM  

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