Tuesday, March 06, 2007

Ciranda 3

Ele adivinhou a cor errada. Pelo menos não tentou adivinhar o que ela pensava, porque passaria mais longe ainda. Dentro da cabeça da colega do banco e eventual parceira sexual do homem, o nome do homem figurava mais ou menos em décimo-terceiro lugar de uma lista que incluía uma nova tintura de cabelos cor chocolate, um par de sandálias de salto não muito alto, o novo regime, alguns acontecimentos recentes do mundo televisivo e, é claro, seu marido, pai de seus filhos, o homem da sua vida. Como amava aquele homem. Quanta felicidade ele lhe dava. Havia seu colega de banco, uma novidade divertida e excitante, mas com prazo estipulado de término para setembro próximo e nada mais.Nada sério. Amor era outra coisa para ela. Uma coisa que às vezes era grande demais e ela não sabia onde por, e que cansava, mas sem a qual não achava que pudesse viver. Ela só temia as coisas sérias demais. Ela sentia um cheiro de morte no ar quando não se podia mais rir. Ela lembrava de um funeral de um avô de quem ela não gostava por causa do seu cheiro e do seu bigode exagerado, e ela menina risonha tinha que prender o riso senão lhe chamavam a atenção. Seu colega de banco a deixava rir, principalmente quando nua.
Ainda era a menina? Ás vezes. Tudo passa tão rápido que nem sempre é possível acompanhar. Hoje, por exemplo, chegou tão rápido e ela ainda é a mesma de ontem. Ontem ela havia acordado às sete e meia da manhã para ver os desenhos animados na TV até o meio-dia, que era hora de ir para a escola. Pateta e Patolino ainda se faziam presentes nos adesivos colados em diferentes peças do seu material de trabalho, mas hoje era preciso muito mais concentração para se divertir. Seu nariz não parava de escorrer, o que fazia com que a lata de lixo sob a mesa começasse a transbordar de lenços de papel. Aliás, cadê a faxineira que não limpou essa sala hoje?
Ela não sabia, mas nós vamos saber. A responsável pela limpeza das salas ímpares do prédio estava por demais ocupada no banheiro, quase beijando o espelho sobre a pia. Descobrira uma mancha vermelha na testa, e, ainda que já houvesse descoberto um jeito perfeito de camuflá-la, com uma providencial puxada de franja, o incômodo persistia. Vira um filme há um tempo atrás em que um sinalzinho parecido era um fatídico sintoma de uma doença terrível. Tinha a certeza de que algo muito ruim aconteceria a ela, fosse a temível doença ou não, sempre tivera a sensação, desde que se lembrava. E qualquer que fosse o monstro que subia pelas suas paredes ocultas, sabia que essa sua profissão que a obrigava a remexer no lixo alheio não ajudaria em nada. Depois de cinco anos lidando com os dejetos dos outros, desenvolvera esse asco particular por gente. Olhava para eles e não conseguia deixar de pensar nos hábitos imundos de cada um nas suas intimidades.
CONTINUA

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