Tuesday, March 06, 2007

Ciranda 4

Ela era capaz de dizer só de olhar quem fazia do pael higiênico um embrulhinho quase inofensivo e quem jogava-o na cesta de qualquer jeito, às vezes até deixando pelo chão mesmo. Quem desenhava caralhinhos voadores e quem deixava telefones em ofertas de sexo bizarro. Quem lavava as mãos e quem passava melecas nas paredes. Após cinco anos, e só esse tempo, tornara-se avessa até ao toque de seu marido. Tinha um sonho recorrente em que se via vivendo numa bolha, como um garoto que uma vez viu num filme. No bolso do seu jaleco cinzento com o logotipo da firma para a qual trabalhava um bilhete escrito por ela mesma na sua letrinha de menina caprichosa do primário: "Comprar chumbinho". Ainda não decidira quais eram os mais nojentos, homens ou ratos. No caminho para casa pensaria nisso.
Seu marido também se olhava no espelho, outro , de outro banheiro. Não antipatizava com os ratos, nem com os homens. Às vezes se pegava rindo à toa, sem motivos, ainda que trabalhasse, como sua mulher, no ramo da limpeza, o que nos faz supor que o contato diário com o lixo tem efeitos diversos de indivíduo para indivíduo. Gostava do seu uniforme cor de abóbora, com a faixa branca fosforescente. Mas, acima de tudo, adorava sentir o vento na cara, enquanto passeava pela cidade, pendurado pelo lado de fora num caminhão de lixo. Ria dos amigos que tinham vergonha da profissão. Não era o máximo passar o dia correndo, sujo, quase livre com o vento batendo na sua cara? "Vergonha é roubar", dizia, acrescentando com uma risadinha, "E ser pego!".
Sem falar nas coisas interessantes que já havia encontrado no lixo. Desenvolvera o hábito de colecionar as que mais lhe interessavam, a saber, cartas de amor - que quando picotadas, o brigavam-no a um meticuloso trabalho arqueológico, juntando os pedacinhos, tentando organizá-los e colá-los em casa, sobre mesa da cozinha - e revistas pornô. Ele era um romântico. E aquelas coisas de amor acabavam no lixo. Ele preferia as coisas depois de gastas pelo uso, é verdade. Aplicava a todas as coisas da vida aquela lei universal de que os sapatos velhos são os mais confortáveis. E poderia-se dizer até que o excessivamente novo lhe causava um certo nojo.
CONTINUA

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