Saturday, February 24, 2007

Ciranda

O gato listrado estuda a mulher sentada vestida naquela cor causadora de controvérsias, na fronteira entre o azul e o verde. Ele adoraria que a mulher lhe desse algo para comer, qualquer coisa mastigável, que enchesse seu pequeno estômago de gato. Como nada parece vir da jovem senhora que espera o filho sair da aula de natação, só resta ao animalzinho listrado continuar a estudar a mulher e concluir, um tanto precipitadamente, que há uns 15 anos atrás ela deveria ter sido um espécime do sexo feminino bem mais atraente aos olhos. A convivência com os seres humanos não faz mesmo bem aos animais. Mesmo eles acabam virando uns canalhas.
A mulher olha o filho, cheia do único amor que existe. Procura no rapazola gorducho traços do pai da criança e não acha tantos. Tem certeza de que o sorriso é o mesmo, embora não se lembre bem da última vez em que viu o homem sorrindo. "É o preço que se paga", pensa ela, como seria triste não ter o apartamento recém-comprado na parte mais nobre da cidade. Sem contar que havia hora e local certo para mostrar os dentes, só não sabia se havia aprendido isso com seu marido ou se o ensinara. Como sentia-se estúpida quando corria e ria ao mesmo tempo, atrás de um táxi, por exemplo. Se não tivesse já um um marido excelente, um lindo filho e um apartamento que tocava as nuvens, talvez resolvesse que precisava correr mais, exercícios.
O filho estava satisfeito com as formas da mãe. Discordava do gato, sem saber. É certo que não gostava de fazê-lo em público, mas quando não havia ninguém por perto, adorava abraçá-la, sentindo no rosto seus seios fartos. Muito mais macio do que os ossos e pelos do abraço do pai. Com o passar do tempo, o filho e o pai se tocariam cada vez menos, para alívio de ambos.
CONTINUA
Imagine um extenso campo florido sob a tênue brisa de outono. Agora esqueça tudo, é a sua vez de colocar a cabeça dentro da fornalha.

Wednesday, February 21, 2007

As tachinhas do quadro de cortiça cheio de fotos de pessoas de quem ela fingia ser amiga tomaram vida e voaram pelo ar como insetos. Isso é só um pesadelo, Eleonor. Cambaleie pelo quarto atordoada, derrube o ventilador com o estardalhaço comum dos eletrodomésticos feridos. Vai que eu tô mandando.
Arraste seus 130 quilos até a cozinha e beba água do gargalo, ninguém está olhando mesmo. Eu sei que você pensa que sempre tem alguém olhando quando se acha que não há ninguém, mas você é paranóica, Eleonor. Não se deve contrariar os paranóicos, então não te contrario. Pára com isso. Não tente achar significado nas tachinhas voadoras, aliás, a partir de amanhã, não, a partir de hoje, desista de vez da interpretação do que quer que seja. Aproveita e joga fora a disciplina também, Eleonor.
É tarde já e amanhã você tem aula de tiro. Bang, Eleonor. Bem que você queria que fosse em mim, mas eu sou uma espécie de névoa, igual ao amor verdadeiro ou o lobisomem, sou história de outra época que não faz sentido aqui nesse prédio de apartamentos. Não tem como não ficar louca, Eleonor, gente em cima, gente em baixo, gente de um lado, do outro.
Volta pra cama. As tachinhas não vão voltar. Se preferir, deixe a luz acesa, que diferença isso faz pros monstros terríveis da madrugada? Sabe aqueles ruídos que você ouve no escuro desde menina, Eleonor? Tinha algo lá sim. Tinha e espreitava. É como os tiros, Eleonor, tem que ser na hora certa. Um dia você vai estar tranquila e desatenta, de preferência nos braços de algum desses meninos trêmulos que você seduz, minutos depois do amor, como dizem, alguma coisa vai acontecer.
Volta Eleonor, volta e conta carneirinhos. Toma uma pílula. Examina as rachaduras no teto. Se você fosse homem, Eleonor, eu te faria se masturbar e depois dormir. Mas isso só funciona com o outro tipo de monstro. Olha que engraçada a tua foto menininha de boca aberta em cima do piano da sala. O vento entra pela janela. O vento também sai, mas não se percebe. É a mesma coisa, dá para saber quando uma mulher vai dar a luz, mas nunca se sabe quando vai comer a cabeça do bebê. Se não fosse por você, eu acabaria com esse mundo, Eleonor. Talvez você seja o Messias, Eleonor. Todo homem que deita contigo sente isso e não consegue mais ir embora. Eu vou deixar você fazer o que quiser agora, Eleonor. Vai, vai. Não é terrível andar sozinha?
Eu acho o Lou Reed um babaca. Tudo bem que ele fez alguns dos meus discos favoritos de todos os tempos, tipo o Velvet Underground & Nico, o New York, o Songs For Drella, o Berlin, tá. Contudo, sendo o babaca que ele é, e acho isso mesmo, por isso repito, lá vou eu, talvez mais babaca ainda, citando ele pela segunda vez nesse brógui.
"Não é sempre que se pode confiar na sua mãe". Fato. Minha mãe me contou algumas mentiras. E não falo aqui de omissões, tipo a minha gatinha que morreu atropelada quando eu tinha 10 anos e cujo destino trágico eu só descobri ano passado (!). Falo de mentiras mesmo.
Minha mãe dizia que se eu mantivesse meus bizarros hábitos alimentares, as paredes do meu estômago colariam e eu morreria, e dizia isso citando um exemplo da filha de alguém com quem teria acontecido isso. Minha mãe dizia que eu teria pesadelos caso ficasse olhando para os reflexos das gotas de chuva no vidro da janela - sério isso!. Minha mãe dizia que eu pegaria uma penumonia instantânea caso tomasse banho e não me enxugasse.
Mais do que tudo, minha mãe disse que eu ia crescer e mudar.

Hoje vi mamãe e, sendo esse um espaço no qual falo basicamente de mulheres e música, achei que era hora de botar essa velhinha mentirosa fã de Cult, Jeff Buckley e Simple Minds aqui, entre minhas mulheres mortas. Minha mãe é a pessoa que mais amo no mundo. Eu sei que eu devia dizer isso para ela, mas é difícil dizer essas coisas. Você não fala com sua mãe sobre o piercing da Karina Bacchi, assim como você não fala sobre o quanto gosta dela.Da mãe, digo.
Eu tenho os olhos dela, o que não é pouco. Olhos de bonzinho, muito mentirosos, por sinal. Eu e minha mãe não somos bonzinhos. Talvez não sejamos abertamente malvados só por covardia ou preguiça.
Aqui nessa casa eu sinto a falta dela. Ela não entende que aqui eu faço um estágio para quando ela não estiver mais por perto. Eu me embebedo de solidão. Eu deito no terraço vendo as primeiras gotas de chuva caindo do céu e molhando minha cara de pateta. Eu toco violão para o meu morro favorito (já que minha platéia favorita acha minhas singelas baladas um primor de breguice), eu tento, eu tento, eu tento fazer cada dia não ser completamente inútil, porque a gente cruza uma esquina e um cofre cai na nossa cabeça, sempre se sabe.
Paro.
Em alguma história que algum dia vou escrever, um personagem secundário, daqueles bem insignificantes, recalcadaço, talvez até por sua pouca importância na minha trama, dirá algo parecido com isso:
- As mulheres usam toda a sua imaginação para encontrar justificativas para ficarem com canalhas como nós.

Wednesday, February 14, 2007

Sei Lá Por Que

Acordei e não aconteceu nada, além da óbvia náusea e dos olhos embaçados de sempre. Permanecer deitado ou jogar de novo o velho jogo? Difícil escolha na manhã morna. Preferi não escolher e vejam como a vida é maravilhosa: ao contrário do que poderia supor uma dessas mentes simples que entende o universo por meio de oposições exageradamente limitadas, existe um enorme vão, uma deliciosa fenda, um confortável recanto entre o fazer e o não fazer, entre o sim e o não, e tudo mais. Nessa manhã eu repousava exatamente ali, apesar da náusea e dos olhos embaçados.
Quem me ensinou tudo a respeito foi Angela. Ela costumava me dizer o quanto me odiava um pouco enquanto me abraçava com amor. O quanto gostava de estar suspensa entre os dois sentimentos. Nada a fazer agora que Angela estava gelada, o que não era novidade tampouco. Praticáramos o que chamam de ato sexual, com o cuidado extremo de não corrermos o menor risco de produzirmos algum ser humano. Vocês sabem, com a natureza não se brinca, e é só olhar pela janela para perceber o quanto ela está contra nós. Deus é uma espécie de inseticida.
Angela pode estar dormindo ou ter morrido. O frio de seu corpo, devido ao clima ou à ausência de vida, não é isso o que importa. O que me espanta, e espero que também os interesse, é a sua incrível capacidade, talvez talento, de estar distante. Mesmo nua, deitada ao meu lado, onde está essa mulher? Inatingível, inalcançável.
Eu a deixo, que é sempre melhor deixar que ser deixado. Porque é frustrante a impossibilidade de possuir uma pessoa. Porque eu nunca sei se ela morre toda noite e ressuscita toda manhã ou simplesmente dorme. Porque esse negócio de amor funciona bem só em canções pop de dois minutos. Sei lá por que.
Eu a deixo e eloa nem liga. Ela é como um daqueles dias em que o sol brilha em algum lugar por cima das nuvens e tudo que nos resta é adivinhar o calor, e de repente chove, e de repente neva, se assim permite a geografia. Ela está no meio lá, ela é que está repousada lá, mas só descobri agora. Eu queria, mas acho que SOU uma daquelas mentes simples, etc. Não aprendi nada com Angela.

Thursday, February 08, 2007


Não, você não vai ouvir falar desse cd em nenhuma lista de melhores de 2006, porque os jornalistas musicais em sua maioria estão mais preocupados com a incapacidade do Arctic Monkeys em compor melodias, ou com o vocalista do Bloc Party saindo do armário. Além do mais, a mente por trás desse belíisimo punhado de canções é a de um senhor inglês de idade avançada, que aparentemente está longe de seus melhores dias, vividos nos anos 60 à frente dos Kinks.
Vou tentar ao menos causar curiosidade pela audição desse, que só não entrou na minha lista de melhores do ano passado porque o descobri tarde demais, outro dia desses, já em 2007. Pois bem, mesmo quando baixei esse cd (compraria se as gravadoras não dormissem), eu o fiz mais por curiosidade do que por real interesse. Qual não foi minha surpresa ao perceber a vitalidade do velho Ray já na primeira faixa, "Things Are Gonna Change". Você ouve aquelas guitarras, a voz e os versos desse cara que talvez seja o pai daquele famoso cinismo inglês que os jovens noventistas tanto apreciavam no Blur, e que os doismilistas acham lindo no Kaiser Chiefs, e começa a se perguntar se esse negócio de rock não é na verdade coisa de velho.
Olha isso "Tudo que ela escreveu foi uma carta de despedida/'Acabou entre nós, para dizer a verdade/Encontrei essa pessoa numa discoteca/Ele é muito especial, me lembra você/Agora você pode se misturar àquela cena agitada/Bares de solteiros e cafés gays/Com frases de efeito para impressionar jovens estudantes/e garçonetes gordas australianas'". Isso e a música é boa, acredita?
"We are suuuuch creatures of little faith" canta ele em "Creatures Of Little Faith". Somos sim. E guitarras sessentistas (de verdade, ele ESTAVA lá, de fato) emolduram lindamente a melodia. Não fosse um solo de sax horrendo, seria perfeita. Mais a frente ele nos convida a fugir das garras do tempo em "Run Away From Time", e, afinal de contas, não é o que todo mundo deseja? Eu desafio qualquer criatura de bom coração (fãs do Adult não contam) a não cantar esse refrão junto com ele depois da segunda ouvida.
"The Tourist" exala aquela ironia que eu falei (ironia das boas, não é aquela coisa Los Hermanos não) e "Is There Life After Breakfast?" já é meu título favorito dos últimos 5 anos. Vamos lá, pare de ouvir "You Really Got Me", "Dead End Street" e "Waterloo Sunset" e dê uma checada no que o Ray anda fazendo hoje, pombas! O cara tá vivo, apesar do tiro na bunda que dizem que tomou em 2005, eu acho.
Nesse tempo insosso da música pop em que os olhinhos pintados dos emo nos deixam com saudade até de lixos tipo Marylin Manson, ainda é possível soar bem fazendo nada além de um bom disco de rock. Talvez seja uma questão de talento né?
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