Nick Cave & The Bad Seeds - "The Boatman's Call"
Tua namorada te deixa, aí você bebe um vidro de shampoo. Ou então cai na putaria. Bebe todo dia. Liga pra ela diariamente que nem aquele cara chato do filme "The Hottest State", testando a paciência da coitada. Se finge de amigo para tentar aproveitar uma possível recaída...
É, mas tem gente que não é tão escrota que nem você, tem gente que pega a dor e transforma em arte.
Olha a cara do boneco na capa. Tudo bem que ele nunca foi um modelo de beleza, desde os primórdios, com cara de junkie terminal, já no início de carreira com o Birthday Party, até hoje em dia, calvo e bigodudo. E a verdade é que quanto mais feio, maior a dor, hahahaha.
Eu tô aqui rindo, mas não devia não. Não há espaço para deboche nesse disco do mestre Cave. Aqui é só dor, melancolia, a certeza do fim de um amor, da esperança, da bondade, da possibilidade de felicidade, num mundo escuro. Para sempre. Romantismo de beira de cova, mas belíssimo.
"Eu não acredito num Deus intervencionista", primeiros versos da primeira música, um hino à beleza da mulher que nunca mais vai voltar. Elas costumam ficar muito mais bonitas quando estão indo embora. Um piano econômico que permeia todas as canções do disco, mas não aquelas notinhas fofinhas de Coldplay ou Belle & Sebastian. Notas graves, arrastadas, graves como a voz, como o som dos baixos, como a existência. Mas ainda há um fiapo de esperança nessa primeira faixa. Talvez Deus exista e a guie de volta.
Piano e hammond nos ensinam em "Lime-Tree Arbour" que "Sempre haverá sofrimento/Ele flui pela vida como água". Mas é na canção seguinte, que temos talvez a lição mais dura a ser aprendida, com violinos acentuando o drama da canção: "People Ain't No Good". Não são. Algumas até tentam, mas, pense bem, você é bom? Não é tão mais fácil ser mau? "Nos casamos sob cerejeiras(...)/O inverno desnudou os brotos/Uma árvore diferente agora ladeia as ruas/Sacudindo os punhos no ar". Pungentes imagens para um amor que deu errado. "Não é que eles tenham corações maus/Eles ficariam com voc~e se pudessem/Mas isso é tudo babaquice/As pessoas não são boas". Aqui Nick Cave chega perto do mestre Leonard Cohen em termos versos geniais da música pop.
Em "Brompton Oratory" o clima fica mais pra cima e...Não, não fica. O tom aqui é um só. É um funeral. Algum conforto na fé se "Não há Deus lá em cima no céu"? "There Is A Kingdom" é confusa, um hino religioso no mesmo mundo abandonado por Deus, mas perdoemos o autor. Quem quer coerência entre as faixas, que vá ouvir um álbum conceitual de rock progressivo. "Da mágoa mundos inteiros foram construídos" é o verso que traga o segredo da beleza desse disco e está em algum lugar de "Are You The One I've Been Waiting For?". E "Where Do We Go Now But Nowhere?" traz outra pergunta impossível de responder no título. Para onde ir? Para onde todos nós vamos? Rumo ao chamado do barqueiro. Os versos quase pronográficos praticamente intarduzíveis quase trazem um sorriso ao meu rosto, em meio às trevas: "In a colonial hotel we fucked up the sun/And then we fucked it down again".
"West Country Girl", "Black Hair" e "Green Eyes" nos dão as pistas das formas da amada pedida. PJ Harvey, dizem alguns. Possivelmente. Na segunda destas músicas, a dor da perda do "mistério". O mistério que parece pertencer a nós, mas que escorre por entre os dedos no fim, ou depois do fim. "Hoje ela pegou um trem para o oeste". "Idiot Prayer", outro título excelente, traz um narrador vislumbrando a própria morte e se perguntando se "O céu é um lugar para onde só os que sofrem vão". Ainda com o amor perdido em mente. Como esquecer? "Far from me. So far from me". Interesante notar que nestas músicas finais, os versos se tornam mais confessionais, menos líricos, banais até.
Geralmente é o que um coração partido faz. Faz de nós banais. Não é o melhor disco de Nick Cave, mas é certamente o mais doloroso e pessoal.
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Engraçado, agora me deu a impressão de que já postei esse disco. Ah, vai de novo.