- Em noites como essa eu me lembro muito da tua mãe, sabia?
Não, não sabia pai. Eu nunca sei, eu nunca soube, eu sei lá o que se passa nessa tua cabeça de velho. Eu acho que você é louco, pai. E eu acho que estou ficando um pouquinho mais louco a cada dia que passa, porque a gente sempre se torna aquilo que mais odeia nos nossos pais. O que há nessa noite? Olho em volta e não vejo nada de especial. Eu sempre tenho esse pesadelo em que é o fim do mundo e todos olham para o céu e vêem que é o fim e ninguém faz nada, ninguém faz nada, ninguém se importa e ninguém se importa com isso, a apatia anestesia. Um dia eu faço uma canção louca e repito isso até cair duro, morto, louco de pedra igual meu pai sentado junto à janela numa noite qualquer, tão qualquer que tudo que se pode dizer é que ela possivelmente seja imperceptivelmente mais comum do que qualquer outra, o que eu não saberia explicar, porque sou um jovem ficando velho e ficando louco.
- Sua mãe adorava noites de lua cheia...
Ah, o céu...
- Era só ver a lua cheia no céu e saber que ela me esperava, cheia de amor para dar...
Não é todo dia que falam desse jeito da sua mãe morta, então sentia-me muito desconfortável com aquela súbita demonstração de intimidade.
- Mas depois...você nasceu...hmpf...nunca mais foi igual...
Velho, você me odeia.Eu te roubei ela. Eu nunca aprendi nada com você, quando você morrer eu vou queimar seu violão, vou retalhar suas roupas, vou cuidar para que sua morte te apague da existência. Olha só eu, achando que você vai morrer...Como se você não fosse eterno, desde que eu me lembro você existe!
- Você devia ter me afogado na banheira quando eu era um neném - eu disse. Disse. Mentira. Disse nada. Só pensei. E nem foi na hora, foi bem depois. Na hora, o silêncio tomou conta, exceto pelo ruído nada agradável de meu pai puxando o ar para dentro da boca por entre o espaço dos dentes da frente, numa espécie de assovio distorcido. Naquela noite em que Deus definitivamente não existia eu fui para a cama com meu ódio e uma frase que o velho adorava atirar na minha cara quando eu "cantava de galo", como ele dizia:
- Não se esqueça de que você saiu do meu saco, seu merdinha!!
Eu tinha trabalho no dia seguinte, mas não conseguia dormir. Fiquei viajando nos meus pensamentos prediletos antes de cair no sono. Quando eu era um moleque cabeçudo e trêmulo, gostava de me imaginar como um talentoso e bem-sucedido jogador de futebol, o novo Pelé. Ouvir a multidão em êxtase gritando o meu nome após um gol de placa, me ajudava a dormir. Todavia agora eu era um homem crescido e me divertia de outro jeito. Eu imaginava ter um sítio num lugar bem distante, o mais longe, sem vizinhos de qualquer espécie. Então eu sequestraria minhas colegas de escritório e as torturaria até a morte, uma por uma. O método de tortura predileto seria essa edificante e injustamente abandonada tradição romana, a crucificação. Eu as crucificaria nuas nas paredes da casa de meu sítio distante, e os cães uivariam, morcegos voariam baixo por entre as amendoeiras.
Depois de ter assassinado umas cinco garotas da recepção, duas digitadoras e uma funcionária do Setor de Compras, adormeci. Os pensamentos a respeito do escritório de certa forma me acompanharam, pois sonhei repetidas vezes que era um envelope de papel pardo. O que também pode ser interpretado como um péssimo presságio, pois no dia seguinte o dia desabou sobre mim.