Moças, não tenham filhos. Mas se for inevitável, que sejam menininhas. Criemos uma nova tradição, ao contrário da China, criemos algum tabu para o nascimento de um filho homem. Olhe esse molequinho ali. O nariz dele está escorrendo, ele tem caracas no pescoço, nos pulsos, nas canelas, as unhas e as orelhas estão imundas, ele coça o saco a cada 15 segundos, ele cospe nas menininhas, ele brutaliza os garotinhos mais fracos. E ele vai crescer, crescer, vai ficar imenso e insuportável e nunca, nunca vai parar.
Sua mãe o pôs de castigo essa tarde, mas não vai adiantar. Ele não vai mudar, ele só vai ficar mais eficiente nas canalhices que pratica. Ele se divertiu demais. Foi suspenso da escola por uma semana, porque levou um rato morto na mochila. Em casa, sem ter o que fazer, pulou o muro da vizinha e amarrou bombinhas no rabo do gato da coitada. Aliás, coitado do gato, que morreu de susto.
Não foi a primeira vez. Uma vez, um dos diversos tios que apareciam em sua casa por períodos e sumiam logo, deu-lhe um cachorrinho, que durou o tempo do garoto levá-lo até o banheiro e afogá-lo na privada. A história do gato era só a mais recente e o motivo do seu castigo.
No pequeno quintal da casa, já não havia o que o garoto pudesse matar. A mãe talvez, mas ela era grande e lhe dava comida. Ela ficava para depois então.
Logo deu um jeito. Formigas. Eram muitas e seriam passatempo para a tarde inteira. Começou com a mão, uma, duas, cem. Quem dera sua mãe não tivesse trancado a garrafa de álcool e os fósforos longe dele desde aquela vez em que tentou incendiar a TV. Poderia incendiar o formigueiro, imagina?
Matar com a mão perdeu a graça. Deve ter sido esse o motivo pelo qual o homem inventou a primeira arma. Depois de um tempo, é preciso um grau de sofisticação, um requinte. O menino usou um graveto. Mas era difícil, as danadas corriam, se escondiam, ele não gostava disso. Ele preferia matar as coisas passivas, porque parecia a ele que o que não se defendia tinha mais é que morrer mesmo.
Mais uma escapuliu para dentro de um ralo.
- Errei, porra!
Outra se moveu rapidamente pela grama e seus olhos a perderam.
- Errei, porra!
Você pode passar a tarde inteira matando formigas, ou tentando matá-las, é um fato. E se escolher as formiguinhas pretas, aquelas inofensivas que nem picam nem nada, sua diversão é completamente inofensiva, pelo menos para você.
A tarde numa rua de subúrbio é hipnotizante. Os pais no trabalho, as crianças na escola, o sol rachando o asfalto, as mães definhando, os velhos morrendo, e um silêncio pesado. Não é outono, mas as folhas desabam das árvores, mas não tem vento para levá-las a lugar algum. A impressão geral é de que o universo é estático. Quente. Morto e quente, se isso é possível. Vazio e cinza. A vida só volta à noite, mas volta desdentada. Suor e sangue trazem de volta a umidade dessas ruas, mas amanhã vai tudo ser deserto de novo.
- Errei, porra! Errei, porra! Errei, porra! Errei porra!
Seria assim até a noite, mas teve um outro barulho. Enorme, monstruoso, do tipo que até o moleque respeitava. Uma freada de um veículo grande. Chegando perto. Perto mesmo. O muro de tijolos se desfez em pó, um caminhão do Ponto Frio entrou com um estrondo, continuou sua marcha através do muro, quebrou a parede da casa do moleque, pegou em cheio a mulher que lia a bíblia na mesa no meio da cozinha. Para ela agora haveria duas opções: céu ou inferno. O segundo ela já conhecia bem.
O moleque ficou olhando quieto por um instante. Depois enfiou o dedo no nariz e tirou uma meleca, que prontamente enfiou na boca. Logo uma pequena multidão começou a se aglomerar em direção a sua casa. Onde estava essa gente toda?
Dizem que de cima das nuvens, uma voz crescida, imensa e insuportável remungou entediada:
- Errei, porra!